Estava
eu no ponto de ônibus as 10:30 de uma noite de sexta-feira. Chovia
sem cessar. Parecia um dilúvio. Estávamos todos encolhidos no ponto
procurando por um espaço seco quando comecei a observar as pessoas.
Observava do pé à cabeça e não me importava se elas me
encarassem, pois poderiam estar me observando do pé à cabeça
também.
Havia
umas 10 pessoas lutando por um espaço como se fosse uma guerra e
cada palmo ganho era uma conquista. As mulheres e crianças levavam
vantagem com a falsa simpatia dos homens adultos brancos. No entanto
eram apenas 3 no ponto: uma freira, uma adolescente de mais ou menos
15 anos e uma mulher com ar de executiva beirando os 40.
Comecei
a observar a freira. Será que ela queria mesmo ser freira? Será que
não lhe tinham imposto a religião e com medo de pensar por si só
ela teria continuado com uma vida sem perguntas? Comecei a pensar
sobre freiras no geral. Será que elas não têm desejos como uma
mulher "comum"? Porquê uma pessoa não pode amar a Deus e
amar as pessoas, neste caso os homens? São amores completamente
diferentes. Não entendo.
Neste
momento a freira me olha como se soubesse todos meus pecados, viro
meu rosto de medo e meus olhos se encontram com belas pernas da
garota. Ela tem jeito de Patrícia ou Bárbara, ou ainda Andréa.
Rica. O que será que está fazendo num ponto de ônibus as 10:30 da
noite? Escola. É, está voltando da escola e talvez seu pai ou sua
mãe (se não são separados) estão com o carro quebrado e ela,
apesar de mostrar um leve sorriso, não gostaria de estar ali.
Patrícia,
Bárbara, Andréa deve ter um namorado alienado como ela. Devem
conversar sobre coisas completamente fúteis. Devem assistir um
programa para adolescentes mais fútil ainda e depois de tocar uma
música bem romântica em inglês na televisão eles não saberão a
letra e se beijarão. Deve estudar estatística na faculdade. É, ela
tem mesmo cara de quem gosta de números. Muito bonita, mas não me
atrai. Tem um corpo muito bem torneado para não dizer que era muito
gostosa, mas não agüento gente burra.
Volto
a olhar para suas pernas e tenho um súbito desejo de tê-la. Ela me
olha com um sorriso falso nos lábios e eu retribuo com a mesma
falsidade. Fazemos nosso joguinho de falsidade por uns cinco minutos
e cansado paro de olhá-la.
A
executiva de 40 anos pisa no meu pé. E que pisada! Ela está
vestindo uma blazer bege muito bonito, mas é masculinizada. Ela me
lembra a Margaret Tatcher. Deve pensar que precisa ser igual aos
homens para se igualar. É o pior tipo de feminismo que existe. Não
deve ser casada, pois nenhum homem deve conseguir desejá-la
sexualmente. Bem, deve haver, mas ela não tem tempo para isso.
Apenas trabalha. Pensa que está ajudando no progresso do país. O
mesmo país que nos viras as costas. Mas ela não pensa nisso porque
deve ter uma casa grande, um cachorro bravo, um vibrador escondido
atrás da televisão e uma tara por pés, pois não para de olhar os
meus. Seu carro deve estar quebrado também.
Como
estar pensando isso destas pessoas sem ao menos conhecê-las? Posso
estar perdendo muito em julgá-las assim. Mas não consigo parar de
inventar histórias das pessoas. E se elas estiverem inventando
histórias de mim. E se a freira estiver imaginando meus pecados; e
se a menina estiver pensando se sou homem mesmo, pois lhe virei o
rosto; e se a executiva estiver me desejando e querendo chamar a
minha atenção porque pisou no meu pé de novo?
Passa
um ônibus e a menina, a executiva, a freira e mais um homem com dois
filhos pequenos e sujos e com a roupa visivelmente doadas sobem. A
menina me olha e me manda um beijo e instintivamente contribuo. Ela
joga pela janela o número de seu telefone mas não o pego. Não sei
porque.
Sobram
eu e mais três homens: uma criança de 12 ou 13 anos, um cara um
pouco mais velho do que eu com uns 18 ou 19 anos e um senhor de 60
anos que só pigarreia. Deve ser por tanto fumar na vida. Ele tem uma
cara de artista boêmio.
A
criança que senti ao meu lado não tinha cara de criança. Quando o
vi escondi meu relógio e pensei em esconder minha carteira, mas
seria muito estúpido da minha parte fazê-lo ao seu lado. Ele deve
estudar em escola pública e como tantos outros sofrer com o ensino
miserável que temos neste país. Nem deve saber que o governo não
quer cabeças pensantes em todo o país. Este adjetivo é para as
elites, mas ele não deve saber. Não deve saber também que poderia
reivindicar por isso porque não lhe ensinaram o que é de seu
direito desde pequeno.
Seu
pai deve ser um alcoólatra e quando chega em casa deve bater em sua
mãe e nele e em seus irmãos. Como toda família pobre deve ter uma
família grande. No mínimo dez num barraco pequeno, enquanto a
classe média/alta tem em média quatro ou cinco por família. E
estes da classe média/alta acham que o país está superpopulado por
causa dos pobres, mas os pobres não tiveram a mesma educação paga
e sim uma educação pública e, consequentemente, muito inferior.
Ele
deve roubar para comer, mas o que estaria fazendo no ponto de ônibus?
Procurando mais uma vítima? Porque quando vejo uma pessoa mais pobre
penso que ela irá me roubar? Minha educação? Os prefeitos,
vereadores e deputados que escolho para meu país me roubam todos os
dias e usam terno. Acho que preciso combater meu preconceito.
Cansado
de esperar sento no banco do ponto ao lado do garotão malhado
vestido com uma camiseta escrito "Gym". Está de walkman,
calça jeans, boné do Chicago Bulls, tênis Nike e tomando Sukita (a
publicidade deve fazer a cabeça dele). Consigo ouvir um som estranho
do walkman e concluo ser som de academia. Está segurando uma bolsa
de academia.
Deve
ter 18 ou 19 anos, aparência atlética, barba bem feita e uma
namorada bem bonita. Trabalhar com o pai, fazer faculdade para alguma
matéria biológica ou educação física. Deve nunca ter lido um
livro na vida. Exceto "1001 maneiras de enlouquecer uma mulher -
vol. 3", que sua namorada deve lhe ter dado de aniversário.
Não
deve ser romântico. Ele tem cara de quem faz amor com a namorada e
dorme. E ronca. Tem tudo na vida mas não tenho inveja nenhuma dele.
Ele me interessa tão pouco que percebo que o artista boêmio que só
pigarreia está me fitando. Passaram dois ônibus e não fui embora
ainda. Não consigo parar de inventar histórias, mas agora só não
fui embora porque o artista boêmio está me encarando.
Ele
me oferece um cigarro e digo que não fumo. Pergunta-me as horas e
digo que não estou de relógio (claro que menti). Ele disse que me
viu escondendo o relógio. Eu sorrio e pergunto se estava me
observando. Ele diz que às vezes ele observa as pessoas no ponto de
ônibus e fica inventando histórias sobre elas. Eu disse que faço o
mesmo e um súbito barulho de uma derrapada corta nosso diálogo.
Olho
para o seu rosto e imagino os traços de quando era jovem. Deve ser
um poeta mal entendido pela sociedade, viveu nos anos 60, foi
exilado, voltou, editou muitos livros mas poucos compraram, deve ter
feito versos para todas as mulheres com quem dormiu, deve ser um
intelectual que não demonstra tal inteligência quando está no bar
com os amigos. Deve ter uma casa pobre de beleza, mas rica em livros.
Um grande sebo dentro de casa com milhares de livros, deve dormir
numa rede com livros abertos sobre o peito. Deve ser fã de Vinícius
de Moares, Fernando Pessoa e Pablo Neruda.
Ele
me olha de novo e pergunta meu nome. Eu digo e pergunto o dele. João.
Um nome tão comum quanto as estrelas que brilham nos céus, ele diz.
Pergunto se é poeta. Ele responde que não. Fico muito decepcionado
e toda a história que imaginei sobre ele se quebra dentro de mim.
Ele me consola dizendo que um dia escreveu poesias, mas hoje isto não
compraria sua comida.
Digo
que gostaria de seguir a carreira literária e ele me pergunta se
tenho algo escrito na mochila que levo. Arranco uma folha de papel do
caderno velho e usado e passo para as suas mãos também velhas e
usadas. Ele lê, pigarreia, olha para as estrelas e lê de novo. Me
entrega a folha de papel e me diz algo tão singelo mas que nunca
esquecerei:
-
Mesmo que todos lhe digam que seus textos são uma merda, que você é
um péssimo escritor e que nunca irá publicar um livro. Mesmo que
apenas sua namorada goste de seus versos e que seu pai os ache
infantis e estúpidos. Mesmo que faça outra coisa de sua vida e que
um bêbado te encha o saco num ponto de ônibus numa noite sem
brilho, sem luar e chuvosa. Mesmo que tudo isto ocorra, nunca pare de
escrever. Nunca pare de se expressar. O dia que você parar de
escrever você morre. Então, não morra.
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