O
velho ciclope permanece imóvel, cheio de serenidade aparente, de
humanidades beatíficas de jeans, bengalas e meias para proteger
pezinhos do frio fumaça de boca.
A
chuva continua a banhá-los... o som estalante das gotas mais
relembra o estalar de madeira em meio as chamas e enquanto isso as
estrelas vestem seus pijamas por detrás das brumas esverdeadas. O
ciclope permanece quieto, simplesmente sereno, com o seu olho
vermelho mirando o céu. Enquanto ele se cala eternamente, os
televisores também se desligam e as pessoas refletem, elas dormem
para acordar amanhã, elas se esquentam com o atrito faiscante do
sexo. Ele continua calado. Ele e seus ainda mais gigantescos irmãos.
Fico
me perguntando enquanto os observo, por que quando chove as pessoas
não vão para a janela observar o espetáculo cinza? Por que acham
mais interessante ver paredes limitantes do que o ar preenchido de
gotas revolucionárias, ver um filme hollywood do que o susto de um
estrondoso trovão? Se o velho ciclope pensa em algo, essa questão
já deve ter lhe ocorrido. Quando a cidade acaricia o céu, quando o
céu lambe sensualmente a cidade e ambos se unem numa peça
além-shakespeare... o ciclope continua em silêncio, agachado,
respirando e sendo respirado, adorado, torturado. Seus pensamentos
circulam independentes, subindo escadas e descendo elevadores.
Deve
ser bom ser ciclope. Nunca falam de si, nunca falam com ele, todos
acham que é uma posse, mas a verdade é que ele os tem. Não que um
ciclope seja possesivo. Nunca há culpa. Mesmo que nele exista um
elevador de serviço ou que não caibam dentro dele todas as idéias
da existência, jamais poderemos culpá-lo. Seus outros olhos sempre
estarão acesos, de maneira aparentemente aleatória, um ciclope tem
mais olhos do que aparenta.
Um
dia Luana me perguntou se um ciclope pode ser masculino ou feminino,
se eles se reproduzem... Deve ser bonito imaginar dois prédios se
amando apaixonadamente, dois arranha céus namorando sob a chuva,
aproveitando que ninguém se interessa em olhar as gotas. Eles se
abraçariam e declamariam poemas quietos um para o outro. Tudo
abafado pelos sussurros intencionais dos pingos. Pensei um pouco
sobre a pergunta que ela me fez e respondi apenas que um ciclope não
é macho nem é fêmea. Disse que "um ciclope é um ciclope".
E a chuva continuou falando.
As
luzes todas se apagaram e a cidade sentiu o veludo das trevas. E
todos os pássaros estranhos, todas as lendas urbanas saíram
rebolando e plantando bananeiras. Luana se abraçou em mim, usando o
medo como desculpa para afeição... Acho que eu gosto das desculpas,
embora encubram perguntas sem realmente responder algo, é sempre bom
estar debaixo das cobertas, sem ver direito o que se passa,
deixando-se guiar pela ausência da luz que nos desperta sentidos
astrais.
Os
peixes do meu aquário já não se assustam com o escuro. Quando
criança eu cantava para eles dormirem e zelava pela sua segurança,
eu tentava plantar um sorriso em seus rostos piscianos, mas nunca
conseguia. Acho que não pode ser feito em cativeiro. Quando algum
deles morria, eu tentava revivê-los, eu os imaginava vivos e
sorridentes, saltitantes, juntos, amigos. Quando olhava, sua carcaça
sumira. "Deus deve tê-lo levado", pensava. Depois descobri
que eram comidos pelos amigos. Tive problemas com amigos na infância,
eu era paranóico demais e demorou para entender o estranho ritual
fúnebre dos peixes... percebi com o tempo que somos diferentes
deles. Nós usamos roupas e pensamos que pensamos... Eles devem rir
disso de vez em quando.
É
incrível as coisas que a gente diz quando se está apaixonado,
principalmente quando ao telefone, onde até as pausas silenciosas
são consideradas palavras e contar sobre a sombra, a cor de uma
tampinha ou o som de uma campainha torna-se assunto de importância
máxima. Adoro ouvir Luana. É legal quando ela fica sem assunto e eu
já não tenho mais nenhuma novidade para contar, nem a mais
quotidiana delas. Sempre que isso acontece ela me lambe o rosto e as
vezes mais do que isso...
Quando
as luzes se apagam e estamos sozinhos, uma das melhores coisas a
fazer é comermos uvas juntos, batendo um papo ou brigando. Brigar
comendo uvas é uma ocasião especial. A gente faz isso sempre e
quase chego a pensar que brigamos de propósito, só para romper o
marasmo e adoçar a doçura da fruta com um sabor meio amargo. É
incrível as coisas que se diz quando se está apaixonado.
Depois
da meia noite eu a levo para casa. Sempre foi assim, menos hoje. Ela
dormirá aqui. Não, não faremos sexo a noite toda. Dormiremos
separados, devemos manter os padrões e os limites da moralidade
sempre presentes... Até parece que você acreditou nisso não é
ciclope?
Abri
as cortinas para podermos dormir diante da chuva imensa que caía na
paz. Sorrimos abraçados esperando que alguma coisa grande
acontecesse, algo como uma aparição, um assalto, uma explosão
nuclear por acidente. Mas não era nada disso, eram só gotas, uma
atrás da outra, cada qual diferente para olhos atentos. Cada qual
representando um mili-segundo de vida, valendo, agora. Isso foi tão
empolgante para mim que quase sorri chorando.
As
gotas foram embora. A manhã não vai chegar tão cedo e eu tento
paralisar tudo, paralisar gotas no ar. Mas a goteira continua a gerar
e gerar. E as gotas se espatifam no chão dando lugar à outras.
Penso então: se eu não posso pará-las não quero vê-las cair e
nem as outras seguintes.
Fecho
os meus olhos sorrindo. Luana já fechou os dela à um bom tempo.
Ouço um ônibus passar, ouço algo se quebrando na rua, um tiro na
favela... eu ouço o piscar do ciclope.
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